Hoje eu estou de férias. E isto me deixa apavorada.

Simone Solidade
6 min readJan 4, 2021

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Escrevo este texto na tentativa de silenciar todas as minhas preocupações sobre não ter finalizado todas as entregas que deveria no trabalho (ainda que este "deveria" seja uma exigência só minha) e também para apaziguar todos os sentimentos de culpa que envolvem o "não ter planejado nada para este momento".

Sim. Tenho 15 dias livres e não tenho a menor ideia do que fazer com isto. E o pacote de bolacha recheada que eu devoro em menos de 10 minutos denuncia como isto tem reverberado em mim.

O fato é que "estar de férias" nunca causou o mesmo efeito em mim. E isto sempre me intrigou. Logo eu, que me considero tão sonhadora pra tantas coisas, porque justo eu não me organizaria para conhecer lugares novos, viver experiências e fotos que valem a pena compartilhar no Instagram? De onde vem este bloqueio com o pensar em lazer?

Tenho percebido que o "aproveitar o tempo" ou o "buscar o lazer" também é algo que se aprende. Prezar pelo o que te traz contentamento e prazer é uma linguagem — e como qualquer "idioma", requer dedicação, observação e prática. E, definitivamente, isto nunca foi uma prioridade.

Durante muito tempo, atribuí esta minha "falta de fluência em lazer" a uma certa desorientação, lerdeza, qualquer atributo pessoal — destes que a gente acredita ser quase fruto do acaso. Mas, como tantas outras descobertas recentes, finalmente entendi que a "desorientação" nunca foi um atributo individual e, sim, consequência de algo maior. E lá estava ela, quase passando despercebida mais uma vez: a questão, meu caros, sempre foi sobre classe.

Mas antes, um pouco de contexto.

Nasci em 1987, no glorioso bairro do Jardim Brasil, Zona Norte de SP. Um bairro de periferia (periferia = outra palavra que só fui entender muito tempo depois). Costumo dizer que tive a sorte de nascer com o pacote-dignidade completo: moradia, saneamento básico, alimentação, pais presentes e amorosos, já com duas irmãs mais velhas treinadas pra ajudar nos cuidados diários.

Uma foto de 2019 da famosa casa 12 — a casa onde nasci e vivi até meus 21 anos.
E esta era toda a paisagem acessível: a vizinha da frente, Rita, a mulher que não envelhece e está sempre a postos para avisar que vai chover e é melhor tirar a roupa do varal.

Cresci com a tradicional cena de ver o pai, metalúrgico, chegando em casa com seu macacão azul da firma, dizendo que faria horas extras (horas extras = outra palavra que só fui entender muito tempo depois). Enquanto isto, minha mãe, que trabalhava de balconista na loja do irmão, fazia da sua 1 hora de almoço o momento de cuidar da casa, e no final do dia, já entrava em casa com alguma coisa do mercado ou as roupas do varal nas mãos. Aquilo de "multitarefa", né?

Neste contexto, o que significa "aproveitar o tempo"? Onde entra a ideia de lazer?

Meu pai sempre diz "boa romaria faz, quem tá na sua casa em paz". Passeio, era alguma visita a algum parente no domingo. Ou, era o dia de ir ao dentista da minha irmã, porque era o dia de andar de metrô, e a estação Ana Rosa era o lugar mais longe que eu conhecia. Longe e chique. Brincar, nunca era na rua, às vezes, nem no quintal. Eu pensava ser só um "exagero do meu pai", mas considerando o bairro e o fato de ser uma menina, parece que fazia sentido ter cuidado.

E não por acaso, eu me tornei aquela criança que adorava ir pra escola. Por que sou nerd? Também, mas claramente porque era a minha chance de mudar de cenário. E férias era o nome da coisa que me impedia de ver outro o cenário. Estar de férias era voltar pra prisão domiciliar que sempre foi a minha infância.

Mas pera aí — isto tem mais a ver com estilo de criação do que com classe, não?

Não estou dizendo que todas as pessoas que nasceram com o mesmo pacote-dignidade passaram pelo mesmo. Nem estou dizendo que não havia alternativas possíveis de lazer. O que quero contar é sobre ter espaço para a construção da ideia de lazer. Ou melhor, sobre o que acontece quando este espaço não existe.

Mas antes, um pouco de contexto. Sim, um pouco mais de contexto.

Meu pai é o filho mais velho de 10 irmãos. Dez irmãos, dos quais 7 morreram antes de completar de 1 ou 2 anos de idade, possivelmente de qualquer doença simples que se agrava num estado de desnutrição e falta de acesso a serviços de saúde. Ao perder o décimo irmão, ele perdeu também a mãe, que tinha 33 anos, e que morreu em decorrência de complicações do parto — ou, como ele conta, porque esperaram sangrar até morrer. E isto aconteceu quando ele tinha 8 anos e seu pai, 58. Logo, aos 8 anos de idade, ele precisou ser o "outro homem da casa". A noção de infância, do brincar, do lazer foi substituída pela necessidade de ajudar o pai, que trabalhava na roça, a trazer a comida pra dentro de casa.

Do outro lado, minha mãe, ainda longe de ter luxos, teve melhores condições de existência. Porém, se escapou da fome que meu pai enfrentou, não escapou do machismo (machismo = outra palavra que só fui entender muito tempo depois). Como a única menina numa família de 5 filhos, logo entendeu que seu papel era servir e possivelmente ali começou a ensaiar a tradicional jornada dupla da mulher. A que estuda, trabalha fora, mas se chega em casa, não tem o direito de ver TV se o pai ou algum irmão já "não estiver usando".

Num cenário de tantas limitações, onde o aproveitar o tempo é se ajustar para garantir a própria existência, o melhor que se aprende sobre o que oferecer aos filhos é garantir que eles não passem pelo mesmo. E quantas vezes você se lembra de que, quando falamos de Brasil, é disso que estamos falando?

Definitivamente, não passei pelo mesmo — agradeço aos meus pais e a todas as políticas públicas envolvidas.

Mas, como parte da primeira geração da família nascida com o pacote-dignidade garantido, entendi que o "próximo nível de qualidade" ainda estava numa camada bem funcional. Afinal, se eu quisesse qualquer coisa além do que eu tinha até ali, isso seria por minha conta.

Logo, o "aproveitar o tempo" e, depois, "o dinheiro", era uma versão repaginada da mesma lógica de "garantir a subsistência". Tempo livre? Ótimo, dá pra fazer um curso. Dinheiro sobrando? Vou comprar um livro. Melhor, vou tirar minha carta de motorista. E assim o tempo passou e tem passado.

Hoje, aos 33 anos e com condições muito melhores aos do início da jornada, eu aprendi a suspeitar da minha facilidade em ter a lista de estudos ou trabalhos que quero fazer pelos próximos 10 anos na ponta da língua, ao mesmo tempo em que não tenho a mínima ideia de quando será o próximo feriado. E isto não é sobre " o que é certo ou errado/ bonito ou feio".

E é justamente por ter conseguido me deslocar pra este lugar de "melhores condições", que é possível perceber este contraste. Por que não se trata mais do meu ambiente escolar, onde o passeio também era algo como visitar outro parente, talvez num espaço mais bonito. Os ambientes agora são outros. É nitidamente sobre lidar com as expectativas de relatos de histórias legais de quem sempre pode pensar nisso, de quem sempre teve o lazer como algo natural. A cartinha com o desenho sobre "o que vocês fez nas férias" da vida adulta, é mais pesada.

Se permitir construir um espaço pra ideia de lazer, desinfectado da ideia de utilidade, é um trabalho árduo.
É sobre saber integrar diferentes necessidades.
É sobre criar repertório de contentamento.
É sobre se autorizar a ter prazer na vida e não se sentir culpada por não conseguir oferecer o mesmo para quem te deu condições de ir além.
É sobre aprender a sonhar para além de conquistar a subsistência.

Hoje, aos 33 anos e com condições muito melhores aos do início da jornada, eu poderia usar as férias para ver outro cenário. Mas, não me organizei pra isto. E talvez este texto tenha sido um jeito de "me perdoar" por isto. Uma maneira que encontrei de me lembrar que algumas linguagens levam tempo para aprender, algumas, inclusive atravessam gerações sem ter sido cogitadas. Não é falta de habilidade individual. E eu não sou minoria.

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