Para a sua dor de estimação
O que acontece quando você entende que dor não é caminho pra merecimento?
É segunda-feira.
O dia amanhece nublado.
Todos os seus conhecimentos meteorológicos apontam para uma única conclusão: vai chover.
Imediatamente você se lembra de um guarda-chuva perfeito pra levar na bolsa, destes leves e compactos.
Mas você está atrasado e já não lembra muito bem onde este guarda-chuva está.
“Talvez nem chova tanto” — e sai para o trabalho.
Mas choveu — e não foi qualquer chuva.
Foi aquele combo paulistano:
hora do rush.
trânsito.
metrô lotado.
vendedor saindo do bueiro com guarda-chuva a 10 reais.
Todos os seus conhecimentos médicos apontam para uma única conclusão: você ficará gripado.
Imediatamente você lembra de um remedinho perfeito, destes que já te salvam nos primeiros sintomas.
Mas você está cansado, e já nem lembra mais onde este remedinho poderia estar.
“Deve ter até passado a validade”- e dorme.
Mas acorda. Por que você lembrou da sua última promessa: a de que não esperaria estar a beira da morte para cuidar da saúde. Então se levanta e, como uma pessoa adulta, vai à farmácia.
Compra o remedinho.
Emocionada, a farmacêutica diz:
— Eu sei que é a primeira vez em anos que você toma uma providência pela sua saúde logo nos primeiros sintomas de que algo não vai bem. Tome isto.
— Um cartão de crédito?
— Sim. Você pode comprar o que quiser. Há um limite infinito.
— Espera. É algum tipo de pegadinha? Alguma promoção? Eu comprei uma cartela premiada, é isso?
— Não, não. Nada disso. Você aguentou esta e outras dores por anos. Você merece. Meus parabéns.
Mas acorda. E ri. Caminha até o armarinho empoeirado dos remédios. E lá estava ele, o próprio remedinho, por sorte, ainda dentro da validade.
É a família. É a catequese. É a Helena da novela. É a princesa do Netinho. É o candidato do Agora ou Nunca.
Ainda que você reconheça todos os mecanismos de exploração da pobreza alheia na televisão. Ainda que você saiba que é só uma novela. Ainda que você conheça os macetes de toda religião. Ainda que você se dê bem com a sua família.
Está lá, no fundo do seu cérebro, a ideia de que é preciso sofrer para merecer. A ideia de que, sem esforço, não vale a pena.
Como se alguém, no grande Departamento Pessoal do planeta, estivesse cronometrando o tempo que você convive com a dor, pra só então poder liberar a carga do seu VR. Uma carga adaptada ao tempo suportando a sofrência. Aquela carga que faria sua vida valer a pena.
Mas dor é só dor.
Não é rito de passagem.
Não é gincana de resistência.
Não é passaporte para outros desejos.
Dor é pra te ajudar a criar seus próprios antídotos.
Seja qual for a sua gripe. Tome a providência necessária.
E no próximo dia nublado, não duvide da voz que te lembra que você já sabe o que precisa fazer. Porque você já sabe o que precisa fazer — e esse é o prêmio.