Para a sua dor de estimação

Simone Solidade
3 min readApr 5, 2020

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O que acontece quando você entende que dor não é caminho pra merecimento?

É segunda-feira.

O dia amanhece nublado.

Todos os seus conhecimentos meteorológicos apontam para uma única conclusão: vai chover.

Imediatamente você se lembra de um guarda-chuva perfeito pra levar na bolsa, destes leves e compactos.

Mas você está atrasado e já não lembra muito bem onde este guarda-chuva está.

“Talvez nem chova tanto” — e sai para o trabalho.

Mas choveu — e não foi qualquer chuva.

Foi aquele combo paulistano:

hora do rush.

trânsito.

metrô lotado.

vendedor saindo do bueiro com guarda-chuva a 10 reais.

Todos os seus conhecimentos médicos apontam para uma única conclusão: você ficará gripado.

Imediatamente você lembra de um remedinho perfeito, destes que já te salvam nos primeiros sintomas.

Mas você está cansado, e já nem lembra mais onde este remedinho poderia estar.

“Deve ter até passado a validade”- e dorme.

Mas acorda. Por que você lembrou da sua última promessa: a de que não esperaria estar a beira da morte para cuidar da saúde. Então se levanta e, como uma pessoa adulta, vai à farmácia.

Compra o remedinho.

Emocionada, a farmacêutica diz:

— Eu sei que é a primeira vez em anos que você toma uma providência pela sua saúde logo nos primeiros sintomas de que algo não vai bem. Tome isto.

— Um cartão de crédito?

— Sim. Você pode comprar o que quiser. Há um limite infinito.

— Espera. É algum tipo de pegadinha? Alguma promoção? Eu comprei uma cartela premiada, é isso?

— Não, não. Nada disso. Você aguentou esta e outras dores por anos. Você merece. Meus parabéns.

Mas acorda. E ri. Caminha até o armarinho empoeirado dos remédios. E lá estava ele, o próprio remedinho, por sorte, ainda dentro da validade.

É a família. É a catequese. É a Helena da novela. É a princesa do Netinho. É o candidato do Agora ou Nunca.

Ainda que você reconheça todos os mecanismos de exploração da pobreza alheia na televisão. Ainda que você saiba que é só uma novela. Ainda que você conheça os macetes de toda religião. Ainda que você se dê bem com a sua família.

Está lá, no fundo do seu cérebro, a ideia de que é preciso sofrer para merecer. A ideia de que, sem esforço, não vale a pena.

Como se alguém, no grande Departamento Pessoal do planeta, estivesse cronometrando o tempo que você convive com a dor, pra só então poder liberar a carga do seu VR. Uma carga adaptada ao tempo suportando a sofrência. Aquela carga que faria sua vida valer a pena.

Mas dor é só dor.

Não é rito de passagem.

Não é gincana de resistência.

Não é passaporte para outros desejos.

Dor é pra te ajudar a criar seus próprios antídotos.

Seja qual for a sua gripe. Tome a providência necessária.

E no próximo dia nublado, não duvide da voz que te lembra que você já sabe o que precisa fazer. Porque você já sabe o que precisa fazer — e esse é o prêmio.

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